sexta-feira, 28 de dezembro de 2007

na barca com Caronte

na barca com Caronte rio Estige

por Moysés Abbud Filho


"O Egito antigo é uma surpresa em termos de civilização. O tema água para aquele povo era absolutamente importante, digno de definir por suas ações em direção a ela, se uma alma entraria ou não no paraíso. O que sabiam e discutiam, há milhares de anos é, até hoje, algo que o homem ocidental, além de não resolver e conseguir desvirtuar e desprezar durante séculos seguidos, tenta, a duras penas, reverter o quadro dramático da questão das águas no nosso tempo.
O Livro dos Mortos [1] do Egito antigo era mais que uma simples obra a se seguir com a finalidade de ser recompensado desta vida, para uma melhor e gloriosa. Era um código moral abrangente que definia a conduta da população em geral. Ao falecer, o cidadão se apresentava perante uma corte de deuses, na qual era julgado.

Diante desta corte, ele fazia sua defesa (ou declaração de inocência). O que chama a atenção é uma das exigências constantes desse livro – “não poluí a água corrente pública”. Em outra versão há depoimento semelhante exigido “nunca desviei o curso de um rio”. Não poluir, nem desviar cursos d’água eram condutas exigidas daquele povo se quisessem alcançar a glória pós-morte. Esse código, se aplicado hoje, seria certamente a condenação da raça humana. Muitos seriam devorados pelo crocodilo do julgamento egípcio na condenação das lamas pecadoras (ou devoradas pelo fogo eterno conforme prevê nosso monoteísmo). O respeito às águas fazia parte do código penal egípcio.

O próprio rio Nilo era considerado quase um Deus vivo de onde vinha a fonte da vida. Aliás, água é símbolo de vida pois toda vida emana dela. Diríamos que a salvação vem da água (que está presente no batismo de várias culturas). Foi assim que os judeus descobriram o mito de Moisés, a salvação vinda do Nilo. O mesmo rio adorado pelos egípcios, seus algozes, ironicamente lhes proporcionou a figura máxima do judaísmo, libertadora do cativeiro infame. Mais uma vez a salvação veio das águas.

O ocidente optou por ser herdeiro da herança greco-romana com todos seus vícios, equívocos e beleza (virtudes). Bastante diferente da dos egípcios, a visão da água no imaginário grego é curiosa no que diz respeito à morte. Segundo o mito, os mortos eram guiados por Caronte, o barqueiro do Hades (inferno), pelo Estige [2]. “O rio Estige (Styx) é um dos rios do inferno clássico. Os outros são o Aqueronte, o Flegetonte, o Letes e o Cócito. O Estige é um rio pantanoso que cerca a cidade de Dite. É também o quinto círculo onde ficam submersos os iracundos. Os vencidos pela ira são amontoados no rio Estige juntos com seus semelhantes que não conseguiram controlar a raiva. São submetidos assim aos efeitos da ira causados por seus semelhantes, e então se mordem, se batem e se torturam. No fundo do Estige estão os rancorosos que, por nunca terem externado sua ira, não podem subir à superfície e ficam a gorgolar a lama do fundo do rio”.

Como se vê, talvez esteja aí o costume de vermos as águas dos rios como depósitos de poluição, já que herdamos da cultura grega. É possível que tenhamos trazido em nosso inconsciente esse desprezo ou pouca importância para com as águas. Na verdade navegamos muito mais pelo Estige do que pelo Nilo. Caronte, o barqueiro da mitologia grega, tem nos conduzido com maestria para o desastre sem que nos apercebamos disso. Pelo jeito, ele tem navegado pelo Tapajós, Tietê, São Francisco e tantos outros. Resta-nos agora barrar esse barqueiro e seguir as orientações do Livro dos Mortos dos egípcios enquanto, supomos, há tempo para impedir um desastre maior."

Notas do blogueiro:

[1]
Segundo Brancaglion Jr., o "Livro dos Mortos" foi assim denominado pelo editor alemão que o publicou em parte ainda no século XIX, era, na verdade, um guia para os re-encarnados, cujo título original era "Livro para sair à luz do dia"

[2]
Em 13 de dezembro de 1519, Antonio Pigafetta, nobre e aventureiro italiano, participando da expedição comandada por Fernão de Magalhães, na primeira viagem de cincunavegação de um europeu, escreveu em sua passagem por terras brasileiras:
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"Seus barcos: os chamam canoas e são feitos de tronco de árvore, que é tornado oco por meio de uma pedra cortante, usada em lugar das ferramentas de ferro, que tanto carecem. São tão grandes essas árvores que numa só canoa cabem de trinta a quarenta homens, que a movimentam com remos semelhantes às pás de nossos padeiros. Ao vê-los tão negros, completamente desnudos, sujos e sem pêlos, tínhamos a impressão de estar diante dos marinheiros da Lagoa Estige."